O que sente falta?

quarta-feira, maio 13, 2020


Em meio a tudo que está acontecendo atualmente, comecei a sentir falta de algumas coisas simples que naturalmente estavam no meu dia-a-dia e hoje infelizmente estou privada de contemplá-las ou vivenciar esses momentos. Fazer se lembrar delas já dar para mim uma força que me mantém sã e fincada na realidade e verdade. Esses momentos que irei descrever para vocês, são minhas percepções particulares. Talvez sejam essas coisas que dão sentido para a minha vida. O que dá sentido a sua? 

Primeiramente, tenho uma mania desde pequena de observar da janela do vidro do carro, a vida se movimentando. E pensar, olhando para as pessoas que passavam: Será que ela está bem? Hoje é um dia difícil para ela? Algo de bem aconteceu? É só mais um dia normal de trabalho... É, um dia trivialmente normal.

Sinto intensamente falta de ensinar as crianças, sou pedagoga. O ato de ensinar para o outro ser humano e encontrar uma forma que ele irá aprender é tão belo. Participar desse momento diariamente é um privilégio para mim, acho uma pena que poucos professores atualmente não conseguem perceber. Às vezes o dia-a-dia, faz a gente esquecer o valor de servir e que a verdade existe ali e é nela onde a beleza está presente.

Ah! A missa. A ausência, não está presente na igreja é melancólico. Tudo isso é uma reflexão gigantesca para os católicos. Mas existe uma coisinha, um momento pequeno que me vem a memória, que embeleza o meu imaginário. Lembrar das mulheres grávidas recebendo a comunhão. Sempre olhei para esse instante com um olhar amoroso e contemplador. O Santíssimo Sacramento que é Nosso Senhor Jesus Cristo, nutrindo duas almas, a mãe e o filho. Que belo. 

Caminhar por uma grande livraria em boa companhia, e passar um bom tempo conversando entre os livros... É um momento simples, mas muito confortante.

O Recife Antigo, o lugar da infância de Manuel Bandeira, descrito tantas vezes em seus poemas, é o local que mais sinto falta. Algo profundamente me toca, sentir aquele ambiente antigo muitas vezes até abandonado, mas intensamente cheio de histórias, verdadeiramente mexe comigo. É sobre o que já foi o Recife, é sobre minha cultura, é sobre a beleza que ainda existe nesse lugar.

Agora, fique com a beleza do poema Evocação do Recife, um dos meus preferidos de Manuel Bandeira.

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.

Rezemos pelas famílias que perderam algum ente querido e por aquelas que estão passando necessidades com toda a situação que estamos passando. A minha intenção ao escrever esse texto é que mesmo em meio a tudo isso, que não possamos perder a nossa sanidade. Que consigamos contemplar o que é bom, belo e verdadeiro. 

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