Sermão sobre o Conhecimento e a Ignorância - São Bernardo de Claraval
(Sermão 36 sobre o Cântico dos Cânticos)
O CONHECIMENTO DAS LETRAS É BOM PARA A INSTRUÇÃO, MAS O CONHECIMENTO DA PRÓPRIA FRAQUEZA É MAIS ÚTIL PARA A SALVAÇÃO ( [1] ).
O CONHECIMENTO DAS LETRAS É BOM PARA A INSTRUÇÃO, MAS O CONHECIMENTO DA PRÓPRIA FRAQUEZA É MAIS ÚTIL PARA A SALVAÇÃO ( [1] ).
I
Aqui estou para cumprir o que vos prometi; aqui estou para
satisfazer vosso desejo; aqui estou, também, obrigado pela dívida que tenho
para com Deus, a Quem sirvo.
Como vedes, três são as razões que me impelem a pregar: o
compromisso assumido, o amor fraterno e o temor a Deus.
Se me abstivesse de falar, pela minha boca condenar-me-ia. Mas o
que acontece se eu falar? Também neste caso, corro o mesmo risco, o de ser condenado
pela minha própria boca: por pregar e não praticar o que prego. Ajudai-me,
pois, com vossas orações, para que eu possa sempre falar o que é necessário e,
com minha conduta, praticar o que prego.
Tinha vos anunciado o tema do sermão de hoje: a ignorância, ou
melhor, as ignorâncias, porque, como lembrais, há duas ignorâncias: a de nós
próprios e a de Deus. E vos aconselhava a evitar uma e outra, pois ambas são
perdição.
Hoje, procuraremos esclarecer melhor esse assunto. Antes, porém,
discutiremos se toda ignorância é condenável. Parece-me que não, pois nem toda
ignorância produz perdição: há muitas e mesmo inúmeras coisas que se podem
ignorar sem problema algum para a salvação.
Se alguém, por exemplo, desconhece artes mecânicas, como a
carpintaria, a arte de edificação e outras que são exercidas para a utilidade
da vida neste mundo, acaso tal ignorância constitui obstáculo para a salvação?
Também são muitos os que se salvaram e agradaram a Deus pela
sua conduta e com seus atos sem as artes liberais (e, certamente, são úteis e
moralmente bons esses estudos). Quantos não enumera a Epístola aos Hebreus (cap. XI), que se tornaram agradáveis
a Deus não com erudição, "mas com consciência pura e fé sincera" (I
Tim 1,5) ( [2] ).
E agradaram a Deus com os méritos de sua vida e não com os de seu saber. Cristo
não foi buscar Pedro, André, os filhos de Zebedeu e todos os outros discípulos,
entre filósofos; nem em escola de retórica e, no entanto, valeu-se deles para
realizar a salvação na terra.
Não é porque fossem mais sábios do que todos os homens - como diz
de si mesmo o Eclesiastes (1, 16) -, mas, por causa de sua fé e
de sua benignidade, o Senhor os salvou e fez deles santos e mestres. Pois os
Apóstolos mostraram ao mundo o caminho da vida, não com sublimidade de
discurso, nem com palavras eloqüentes de sabedoria humana, mas pelo modo como
aprouve a Deus: pela estultícia de sua pregação, aprouve a Deus salvar os que
crêem, porquanto o mundo com sua sabedoria não O conheceu (I Cor 2, 1; 1,
17-21).
II
Posso estar dando a impressão de querer lançar em descrédito o
saber, de repreender os doutos, de proibir o estudo das letras. Longe de mim,
tal atitude! Conheço muito bem o inestimável serviço que os homens doutos têm
prestado à Igreja: seja refutando os adversários dela, seja na instrução dos
simples.
Com efeito, o que li na Sagrada Escritura foi: "Como
rejeitaste o saber, também Eu te rejeitarei, para que não exerças Meu
sacerdócio" (Os 4, 6). E mais: "Os doutos resplandecerão com o brilho
do firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos a justiça, brilharão como
estrelas em perpétuo resplendor" (Dn 12, 3).
E, finalmente: "No acúmulo de saber, acumula-se a dor"
(Ecl 1, 18).
Vede que há saberes e saberes: há um saber que produz o inchaço e
há um saber que contrista. Quero que sejais capazes de distinguir qual deles é
útil e necessário para a salvação: o que incha ou o que dói? E não duvido que
prefiras o que aflige ao que incha, porque, se a saúde pela inchação é
aparentada, pela aflição é procurada ( [4] ).
Ora, quem procura, acaba encontrando, pois "quem pede,
recebe" (Lc 11,10). E é certo que Aquele que cura os que têm o coração
contrito abomina o inchaço dos orgulhosos, pois a Sabedoria diz: "Deus
resiste aos soberbos e dá Sua graça aos humildes" (Tg 4,6) ( [5] ).
E o Apóstolo diz: "Exorto-vos, em virtude do ministério que pela graça me
foi dado, a não pretender saber mais do que convém, mas saber com
sobriedade" (Rom 12,3).
O Apóstolo não proíbe saber, mas sim saber mais do que convém. E o
que é saber com sobriedade? É cuidar de aplicar-se prioritariamente ao que mais
interessa saber, pois o tempo é breve ( [6] ).
Ora, ainda que todo saber, desde que submetido à verdade, seja bom, tu, que
buscas com temor e tremor ( [7] )
a salvação e a buscas apressadamente, dada a brevidade do tempo, deves
aplicar-te a saber, antes e acima de tudo, o que conduz mais diretamente à
salvação.
Acaso não dizem os médicos do corpo que parte da medicina é
precisamente determinar a ordem dos alimentos: qual deve ser ingerido antes,
qual depois e o modo de os ingerir? Ora, mesmo sendo bons os alimentos que Deus
criou, tu os tornas nocivos se não observas o modo e a ordem ao ingeri-los.
Aplica, pois, aos saberes, o que dissemos dos alimentos.
III
Mas o melhor é encaminhar-vos ao Mestre. Não é nossa esta
sentença, mas dEle; ou antes, é nossa porque a aprendemos dAquele que é a
Verdade. E diz: "Se alguém pensa que sabe alguma coisa, ainda não sabe
como deveria saber" (ICor 8,2).
Vede como não é aprovado o saber muitas coisas se ignora o modo
de saber. Vede como o fruto e a utilidade do saber consiste no modo de saber.
Mas o que é este modo de saber? O que, senão saber segundo a
ordem, o amor e o fim devidos?
Segundo a ordem, isto é, priorizando o que é mais necessário para
a salvação; segundo o amor ( [8] ),
isto é, voltando-nos mais ardentemente para o que mais nos impele a amar;
segundo o fim: não por vaidade ou curiosidade ou objetivos semelhantes, mas
somente pela tua própria edificação e pela de teu próximo.
Há quem busque o saber por si mesmo, conhecer por conhecer: é uma
indigna curiosidade.
Há quem busque o saber só para poder exibir-se: é uma indigna
vaidade. Estes não escapam à mordaz sátira que diz: "Teu saber nada é, se
não há outro que saiba que sabes" (Persius, Satyra 1, 27).
Há quem busque o saber para vendê-lo por dinheiro ou por honras: é
um indigno tráfico.
Mas há quem busque o saber para edificar, e isto é amor. E há quem
busque o saber para se edificar, e isto é prudência.
IV
De todos estes que buscam o conhecimento, só os dois últimos não
incorrem em abuso do saber, já que o buscam para praticar o bem. Deles é que
fala o salmo: "O saber é bom para quem o põe em prática" (Sl 111,
10). Os demais devem ouvir a Escritura: "Quem conhece o bem e não o
pratica, comete pecado" (Tg 4, 17).
É como se, numa comparação, disséssemos: tomar alimento e não
digeri-lo faz mal. Um alimento indigesto, mal cozinhado, produz maus humores e,
em vez de nutrir o corpo, corrompe-o. Assim também pode dar-se o caso de o
estômago da alma, que é a memória, ingerir muitos conhecimentos que não foram
cozinhados pelo fogo do amor e nem passaram para ser elaborados pelo aparelho
digestivo da alma (no caso, os atos e costumes), a fim de que a alma se torne
boa pelo bom conhecimento (o que pode ser atestado pela vida e pelos costumes).
E acaso um tal saber indigesto não deve ser considerado pecado, tal como um
alimento que se transforma em humores maus e nocivos? E os maus humores do
corpo não equivalem aos maus costumes da alma? E não virá a sofrer de inchaços
e cólicas de consciência quem conhece o bem e não o pratica?
Acaso não se lhe aplicará a sentença de morte e condenação, toda
vez que lhe vier à mente a palavra de Deus: "O servo, que conhece a
vontade de seu senhor e não a pratica, torna-se digno de muitos açoites"
(Lc 12,47) ?
E não será em nome desta alma, o pranto do profeta (Jer 4,19):
"Doem-me as entranhas, doem-me as entranhas"? Gemidos geminados ( [9] )
que - salvo outra interpretação - apontam para o que dizíamos: o profeta fala
de si mesmo, pois estava pleno de saber, inflamado de amor e, desejando
intensamente transmitir esse saber, não encontrou quem se interessasse por
ouvir e teve de arcar sozinho com o peso de um saber que não pôde comunicar.
Chorou, pois, o zeloso doutor da Igreja, tanto por aqueles que menosprezam a
busca do saber que dirige o bem viver, como pelos que, embora sabendo, no
entanto, vivem mal. E, por isso, o profeta repete seu lamento.
V
Compreendes agora quão verdadeira é a sentença do Apóstolo:
"O saber incha"? Por isso, convém que a alma antes se conheça a si
mesma, coisa que é requerida pela ordem e pela utilidade.
Pela ordem, porque, para nós, o primeiro conhecimento deve ser o
do que somos; pela utilidade, porque tal conhecimento não incha, mas humilha e
serve de fundação para a edificação. Pois o edifício espiritual que não tem seu
fundamento na humildade, não se agüenta em pé.
E para aprender a humildade, a alma não encontra nada mais
convincente do que descobrir-se a si mesma na verdade. Deve-se, portanto,
evitar a dissimulação, o auto-engano doloso, deve o homem encarar-se de frente,
evitando fugir de si mesmo.
Pois, defrontando-se a alma com a límpida luz da verdade,
encontrar-se-á muito diferente do que julgava ser e, suspirando em sua miséria
- uma miséria que já não pode esconder porque é verdadeira e manifesta -, clamará
com o salmista ao Senhor: "Em Tua verdade me humilhaste" (Sl 119,
75). Como não se humilhará neste verdadeiro conhecimento de si, ao dar-se conta
da carga de seus pecados, sob o peso deste corpo mortal, ao ver-se imersa em
preocupações terrenas, infectada pelos desejos carnais, cega, curvada, fraca,
envolta em mil pavores, angustiada ante mil dificuldades, sufocada ante mil
dúvidas, indigente de mil necessidades, inclinada ao vício, impotente para as
virtudes?
Onde está agora o olhar arrogante? Onde, a cabeça orgulhosamente
erguida? Não será ela ainda mais arremessada em sua desolação, trespassada por
espinhos? (Sl 32, 4). Que ela - diz o salmista - derrame lágrimas, que chore e
gema, que se volte para o Senhor e clame em sua humildade: "Cura, Senhor,
minha alma, pois pequei contra Ti" (Sl 41,5).
Se ela se voltar para o Senhor, encontrará consolo, pois Ele é o
Pai das misericórdias e o Deus de toda consolação.
VI
Eu, quando olho para mim mesmo, fico imerso em amargura; logo,
porém, que alço a vista para o auxílio da misericórdia divina, suaviza-se meu
amargor com a alegria da visão de Deus e Lhe digo: "Minha alma está
conturbada interiormente, por isso me lembro de Ti" (Sl 42,7).
Basta um pouco de conhecimento de Deus para experimentar que Ele é
piedoso e solícito, pois, na verdade, Ele é um Deus de bondade e misericórdia,
que perdoa a maldade (Joel 2,13); Sua natureza é a bondade e é próprio dEle
perdoar e ter misericórdia sempre.
Deus se dá a conhecer nesta experiência e desta maneira salutar, a
partir do momento em que o homem se reconheça indigente e clame ao Senhor; e
Ele o ouvirá e dir-lhe-á: "Eu te libertarei e tu Me glorificarás" (Sl
50,15).
Assim, o conhecimento próprio é um passo para o conhecimento de
Deus. Vê-lO-ás em Sua imagem, que em ti se forma, na medida em que tu,
desarmado pela humildade, com confiança, irás refletindo a glória do Senhor e,
levado pelo Espírito de Deus, de claridade em claridade, irás te transformando
nessa imagem.
VII
Reparai, pois, como ambos conhecimentos são necessários para a
salvação, de tal modo que não pode faltar nenhum dos dois. Pois, se desconheces
a ti mesmo, não terás temor de Deus em ti, nem humildade. Por acaso pensas que
podes alcançar a salvação sem temor de Deus e sem humildade?
(Neste momento, o auditório murmura: "Não, não!").
Fizestes bem de indicar-me o "não" absoluto de vosso
juízo, ou antes, que não estais desprovidos de juízo... Nem vale a pena
continuar falando sobre o óbvio.
Mas, prestai atenção a um outro ponto...
Ou será melhor parar, por causa dos que já estão pestanejando? Eu
pretendia, em um só sermão, dar conta do que tinha prometido: falar da dupla
ignorância, e fá-lo-ia se não me parecesse que este discurso já está
demasiadamente longo para os que o acham cansativo. E vejo alguns bocejando e
outros dormitando. E não é de admirar, pois a longuíssima vigília de oração que
tivemos hoje os desculpa.
O que direi, porém, daqueles que dormem agora, mas dormiram também
enquanto rezávamos os ofícios? Não quero, porém, levar isto adiante e
envergonhá-los, baste ter mencionado o fato... Penso que de hoje em diante
cuidarão de estar atentos, advertidos que foram pela nossa correção.
Com esta esperança e em atenção a eles, em vez de continuar,
partamos, suspendendo por clemência o discurso, e dêmos-lhe fim, embora não
tenha atingido seu fim. Eles, por sua vez, tendo sido objeto de nossa
compreensão, associem-se a nós em glorificar o Esposo da Igreja, Nosso Senhor
Jesus Cristo, que está acima de todas as coisas, Deus bendito pelos séculos.
Amém.
Tradução: Jean Lauand
( [1] ) A palavra latina salus significa tanto saúde como salvação;
acumulação semântica especialmente incômoda para o tradutor, pois Bernardo freqüentemente
compara a saúde da vida presente à salvação eterna...
( [3] ) Scientia inflat diz o Apóstolo. Ao longo de todo o texto,
estamos traduzindo a palavra scientia por saber,
pois nosso termo ciência,
mais do que um conhecimento pessoal, indica o saber objetivo: o das diversas
ciências. E Bernardo fala do saber (scientia) como algo subjetivo, o
saber de cada um. Traduzimosinflat por
incha, que também dá a idéia do vazio da vaidade e, além disso, ajusta-se à
comparação que Bernardo estabelecerá entre o inchaço do saber e o inchaço do
corpo.
( [4] ) Procuramos manter algo da rima e do ritmo
destas últimas palavras: Bernardo, como Agostinho, destaca momentos importantes
do sermão, marcando-os com jogos de palavras, no caso: ...sanitatem, quam tumor simulat,
dolor postulat.
( [5] ) E também I Pe 5, 5 e Pr 3, 34.
( [8] ) Studio, no original. Como se sabe, a palavra latina studium significa também diligência, amor que
move a agir.
( [9] ) Bernardo interpreta alegoricamente (!) a
repetição do lamento do profeta e marca esta passagem por mais um jogo de
palavras: ingeminatio geminum.
muito bom!!! faz mais <3
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